A Cultura e o aleijamento espiritual brasileiro
O conceito mais interessante que ouvi sobre Cultura partiu do professor Olavo de Carvalho durante o XVII Fórum da Liberdade, em 2004. Nas suas palavras, cultura é o “conjunto de atividades e esforços humanos voltados à descoberta, à contemplação do supremo bem ou do sentido da existência” (1). Isso significa que a ação humana deve nortear-se por valores e princípios que apontem para além de sua jornada carnal; que a vida finita se renda à face eterna da existência.
A beleza é um valor fundamental a ser cultivado no encalço do “supremo bem”. Para Platão, a busca pelo belo parte da observação de suas manifestações físicas mais evidentes (como de um corpo escultural ou de uma vasta paisagem), eleva-se a níveis mais profundos e abstratos (como das ações e das ciências) até chegar à deliciosa contemplação da “beleza essencial” que há em tudo; indo do “natural” ao “sobrenatural”, do visível ao invisível. “Se a vida alguma vez mereceu ser vivida, é no momento em que o homem contempla a beleza essencial” (Platão, O Banquete, tradução de Heloisa da Graça Burati).
O belo exerce uma espécie de atração sobre a alma humana, que o reconhece de forma espontânea e a ele se volta como fosse movido por um magnetismo natural que trabalha sem a necessidade de cálculos intelectuais. Nesse sentido, no documentário Why Beauty Matters? (Por Que a Beleza Importa?), o filósofo Roger Scruton usa o exemplo do encantamento observado na face de uma criança (que evidentemente não passara por qualquer formulação intelectual sobre a beleza) ao vislumbrar pela primeira vez uma praia paradisíaca (2). Assim como o amor, a beleza eleva-nos ao reino onde as palavras são insuficientes e o sentimento nela originado não é físico e nem pode ser meramente subjetivo. Isso é possível porque o fascínio diante da beleza está em harmonia com a natureza da percepção humana.
Entretanto, prossegue Scruton, a partir do século XX, a beleza deixou de ser importante e as artes passaram a servir ao consumo, ao incentivo dos prazeres e vícios, à mera expressão da realidade concreta e ao choque sensorial que leva à banalização do que é desagradável. As artes começaram a ser apreciadas não pelo fascínio imediato que despertam na alma, mas por racionalizações, argumentos e ideias externas associadas artificiosamente às “obras”. Troca-se o “ser” pelo “deve ser”, substitui-se a devoção natural ao templo do “supremo bem” pela prostração mental a um deformado edifício ideológico.
O efeito na psique de tal perversão, como se pode deduzir, é catastrófico, algo parecido com retirar dos morcegos os seus sonares – mecanismos biológicos que os orientam no escuro – e substituí-los, sei lá, por um livro de geografia, o que evidentemente provocaria a extinção da espécie. Em relação a nós, humanos, a perda do senso estético natural talvez não represente a morte física imediata, mas certamente provoca uma espécie de aleijamento espiritual, a perda do sentido da vida, tornando-nos depressivos e ansiosos, reduzidos aos nossos instintos animalescos, carentes das luzes da beleza em meio às trevas da fealdade.
Na mesma palestra em 2004, Olavo de Carvalho descreveu o quanto o conceito de cultura está deturpado no senso comum brasileiro. “Hoje, entendemos cultura por três maneiras. Primeiro, por seu lado lúdico, ou seja, como divertimento, showbusiness, samba e rock and roll. Em segundo lugar, como um produto comercial, como uma indústria que deve funcionar e dar lucro. E, em terceiro lugar, como propaganda política. Eu não sou contra a diversão, não sou contra ganhar dinheiro e nem a propaganda política, mas quando você tem tudo isso e você perde o sentido da vida, é melhor estourar os miolos”.
A esquerda brasileira tem responsabilidade, desde que chegou ao poder e ali permaneceu por três décadas, não só pela trágica escalada da violência no país, que matou muito mais gente que o Regime Militar (no qual assenta seu mito fundador), como também pelo aleijamento espiritual do povo. Para citar o exemplo de um caso que estou mais atento, observe o atrofiamento do universo temático e rítmico da música que tocava nas rádios a partir da década de 1990, que passou de um amplo leque de estilos, para o funk e o sertanejo que nos dias atuais povoam o imaginário dos incautos com as crônicas da bebedeira e da putaria, conforme escrevi meses atrás (3).
Honestamente, não sei qual é o exato papel do Estado para converter os rumos da cultura atual para a desejável busca do “bem supremo”. Mas talvez o primeiro passo seja reconhecer abertamente a situação deplorável das coisas e se posicionar: queremos um povo sábio ou animalizado? Se for certo que sempre é possível piorar, é igualmente correto que já passou da hora de reagir, não no sentido de punir os discutíveis maus gostos artísticos, mas de oferecer um leque maior e belo de opções. E, assim, começar a subir os degraus até que a luz do sol torne-se novamente visível.
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REFERÊNCIAS
1 – Debate no XVII Fórum da Liberdade
https://youtu.be/L6AB7jZ-hiY
2 – Documentário Why Beauty Matters?
https://youtu.be/bHw4MMEnmpc
3 – Sobre a decadência da música brasileira https://web.facebook.com/joaocassiooficial/posts/549189492341455
4 – Site
WWW.joaocassio.com